Os Precedentes do Cristianismo
Os fatores históricos do cristianismo são: em primeiro lugar, a religião israelita; em segundo lugar, o pensamento grego e, enfim, o direito romano. De Israel o cristianismo toma o teísmo. É o teísmo um privilégio único deste povo pequeno, obscuro e desprezado; os outros povos e civilizações, ainda que poderosos e ilustres, são, religiosamente, politeístas, ou, no máximo dualistas ou panteístas. De Israel toma o cristianismo, também, o conceito de uma revelação e assistência especial de Deus. Daí a idéia de uma história, que é desenvolvimento providencial da humanidade, idéia peculiar ao cristianismo e desconhecida pelo mundo antigo, especialmente pelo mundo grego.
Na revelação cristã é filosoficamente fundamental, básico, o conceito de uma queda original do homem no começo da sua história, e também o conceito de um Messias, um reparador, um redentor. Conceitos indispensáveis para explicar o problema do mal, racionalmente premente e racionalmente insolúvel. No entanto, o mundano e carnal Israel resistiu tenaz e longamente a esta idéia de uma radical miséria humana -, e, por conseqüência, à idéia de uma moral ascética. Idolatrou a vida longa e próspera, as riquezas da natureza e a prosperidade dos negócios, as satisfações conjugais e domésticas, o estado autônomo e privilegiado, o poder e a glória - até esquecer-se de Deus. Perseguiu os Profetas, que o chamavam ao temor de Deus e à penitência, e recalcitrou contra os flagelos com que Jeová o castigava, até que Israel, ainda que contra a sua vontade, foi submetido à sujeição e à renúncia, tendo adquirido, através de dolorosas experiências, o triste sentido da vaidade do mundo. A solução integral do problema do mal viria unicamente do mistério da redenção pela cruz - necessário complemento do mistério do pecado original.
Quanto ao pensamento grego , deve-se dizer que entrará no cristianismo como sistematizador das verdades reveladas, e como justificador dos pressupostos metafísicos do cristianismo; não, porém, como elemento constitutivo, essencial e característico, porquanto este é hebraico e cristão. E quanto ao direito romano, deve-se dizer que entrará no cristianismo como sistematizador do novo organismo social, a Igreja, e não como constitutivo de seus elementos essenciais e característicos, que são próprios e originais do cristianismo.
Entretanto, o verdadeiro criador do cristianismo, em sua novidade e originalidade, é Jesus Cristo. Pode ele dar plena solução ao problema do mal - solução que representa o maior valor filosófico no cristianismo - unicamente se é Homem-Deus, o Verbo de Deus encarnado e redentor pela cruz. Diferentemente, a solução - ascética - cristã do problema do mal seria vã, como a estóica e todas as demais soluções filosóficas de tal problema, que ficaria, portanto, sem solução alguma. E, em geral, a pessoa de Cristo tornar-se-ia inteiramente ininteligível, se ele não fosse Homem-Deus.
Não é este o momento de fazer um exame crítico, filosófico e histórico, para determinar a personalidade de Cristo. Basta lembrar que, uma vez admitido e firmado o teísmo, logo se segue a possibilidade de uma revelação divina e da divindade de Cristo, para tanto não precisando, propriamente, senão de provas históricas. Os argumentos em contrário não são positivos, históricos, mas apriorísticos, filosóficos; quer dizer, dependem de uma filosofia racionalista e atéia em geral, humanista e imanentista em especial.
Eis o esquema lógico da demonstração da divindade de Jesus Cristo. Devem ser examinados à luz da crítica histórica, antes de tudo, os documentos fundamentais, relativos à revelação cristã - Novo Testamento . E achamo-nos diante de uma personalidade extraordinária - Jesus Cristo - , que ensina uma grande doutrina, leva uma vida santa, afirma-se a si mesma como divina e comprova explicitamente com prodígios e sinais - os milagres e as profecias - esta sua divindade. E como Jesus Cristo se torna garantia de toda uma tradição que o precedeu - o Velho Testamento - , também se responsabiliza por uma instituição que a ele se segue - a Igreja católica. A esta, portanto, caberá interpretar infalivelmente a revelação judaico-cristã e, evidentemente, também a parte que diz respeito à queda original e à relativa reparação, a qual, por certo, pode dar origem, humanamente, a várias interpretações.
O Novo Testamento
Como é notório, Cristo não deixou nada escrito, de sorte que o nosso conhecimento mais imediato em torno da sua personalidade se realiza através dos escritos dos seus discípulos. Temos de Cristo testemunhas também pagãs, além das testemunhas cristãs; estas são extracanônicas e canônicas. Estas últimas, porém, são fundamentais e mais do que suficientes para o nosso fim. Cronologicamente, são elas as seguintes: Paulo de Tarso , os Evangelhos sinópticos e o Evangelho de São João.
Paulo de Tarso, na Cilícia, fôra um inteligente e zeloso israelita. Não conheceu Jesus Cristo durante sua vida terrena, mas, convertido ao cristianismo e mudado o nome de Saulo para o de Paulo, tornou-se o maior apóstolo do cristianismo entre os gentios ou pagãos, revelando-lhes em Cristo crucificado o Deus padecente, vítima e Salvador, que eles procuravam em suas religiões misteriosóficas - e não acharam. A vida de Paulo é caracterizada por muitas e longas viagens, realizadas para finalidades apostólicas. Para o mesmo fim escreveu Paulo as famosas cartas às comunidades cristãs dos vários centros da Antigüidade, relacionados com ele. As grandes viagens apostólicas de Paulo são três e têm como ponto de irradiação Antioquia, tocando os centros mais importantes do mundo antigo: Jerusalém, Atenas e Roma. Nesta cidade encerra a sua vida mortal com o martírio. Destarte ele se pôs em contato com todas as formas de civilização do Oriente helenista e do mundo greco-romano. Quanto às Epístolas - escritas em grego - devemos dizer que não são cartas logicamente orgânicas e ordenadas, nem literariamente aprimoradas, tanto assim que podiam desagradar a um helenista refinado como Porfírio; são porém, densas de conteúdo, de forma incisiva e eficaz. O problema que, sobretudo, preocupa Paulo é o do mal, do sofrimento, do pecado, de que acha a solução em Cristo redentor, crucificado e ressuscitado. É este o aspecto do cristianismo que mais o impressionou, de sorte que é ele, por excelência, o teólogo da Redenção. No Velho Testamento Deus tinha dado aos homens a lei que, devido à miséria do homem decaído, não tirava o pecado, embora fosse uma lei moral; pelo contrário, até o agradava, tornando o homem consciente de sua falta. No Novo Testamento, Deus, mediante a graça de Cristo, tira o pecado do mundo, embora nos deixando na luta e no sofrimento, que Paulo sentia tão profundamente.
Os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas - chamados evangelhos sinópticos - formam um grupo à parte, por certa característica histórica e didática, que os torna comuns e os distingue do quarto evangelho, o de João, de caráter mais especulativo e teológico. O primeiro em ordem de tempo é o Evangelho de Mateus , o publicano, tornando em seguida um dos doze apóstolos. Escrito, originariamente, em aramaico e destinado ao ambiente palestino, foi em seguida traduzido para o grego e, nesta língua, transmitido. É o mais amplos dos Evangelhos e relata amplamente os ensinamentos de Cristo. O segundo é o Evangelho de Marcos , que não foi discípulo direto de Cristo, mas nos transmitiu o ensinamento de Pedro. Foi escrito em grego e destinado a um público não palestino. O terceiro dos Evangelhos sinópticos é, enfim, o de Lucas , companheiro de Paulo, que o chamava o caro médico . Também ele não foi discípulo imediato de Cristo, e o seu evangelho foi também escrito em grego.
O quarto evangelho, inversamente - como o primeiro - foi escrito por um discípulo direto de Cristo, um dos doze apóstolos: João , o predileto do Mestre, testemunha da sua vida e da sua morte. O quarto Evangelho, juntamente com este valor histórico, tem um especial valor especulativo, teológico. Como Paulo pode ser considerado o teólogo da Redenção, João pode ser considerado o teólogo da Encarnação; Cristo é o Verbo de Deus encarnado para a redenção do gênero humano. Também o Evangelho de João foi escrito em grego; e, cronologicamente, é o último dos Evangelhos e dos escritos do Novo Testamento, os quais - no seu conjunto - podem se considerar compostos na Segunda metade do primeiro século, tomada com certa amplidão.
A Solução do Problema do Mal
Não há dúvida de que o problema do mal foi o escolho contra o qual debalde se bateu a grande filosofia grega, como qualquer outra filosofia, visto ser o mal um problema racionalmente insolúvel. Que coisa é, pois, precisamente este mal, que tem o poder de tornar teoricamente inexplicável a realidade, e praticamente dolorosa a vida? Não é, por certo, o mal assim chamado metafísico , a saber, a necessária limitação de todo ser criado: porquanto esta limitação nada tira à perfeição dos vários seres a eles devida por natureza, mas apenas aquela plenitude do ser, que pertence unicamente a Deus, rigorosamente, isto é, teisticamente concebido como transcendente e criador, pois esse gênero de mal, no teísmo, é plenamente explicável.
Não resta, então, senão o mal, o chamado físico e moral , porquanto é limitação da natureza, verdadeira imperfeição de um determinado ser. O mal, físico e moral, é um problema, precisamente se se considerar a natureza específica do homem, a qual é a natureza do animal racional, o que não significa certamente lhe pertença a racionalidade pura, devida ao puro espírito; mas certamente exige a subordinação do sensível ao inteligível, do material ao espiritual. Isto significa exigir que os sentidos sejam instrumentos do intelecto e o instinto seja instrumento da vontade, naquele característico processo que é o conhecimento e a operação humana; exige que o corpo humano e a natureza em geral sejam submetidos às imposições do espírito, como deveria ser em uma hierarquia racional dos valores.
Ora, se se considerar, sem preconceitos, o indivíduo e a humanidade, a psicologia e a história, as coisas serão bem diferentes. Com efeito, demais vezes o sentido - do qual o conhecimento deve no entanto partir - sobrepuja o intelecto. E bem poucos homens e só com muitas dificuldades e não sem graves erros, chegam ao conhecimento daquelas verdades racionais - Deus, a alma, etc. - que são, entretanto, indispensáveis para uma solução humana do problema da vida. E, mais freqüentemente ainda, o instinto assenhoreia-se da vontade, e a maioria dos homens viveu e vive cegamente, contra as exigências da própria natureza racional, mesmo quando a verdade é conhecida pelo intelecto.
Este é o mal moral, espiritual, que domina o mundo humano. Pelo que diz respeito ao mal físico, a coisa é ainda mais patente: basta lembrar o sofrimento e a morte. Com isto, naturalmente, não se quer dizer que a impassibilidade e a imortalidade sejam uma exigência da natureza humana, como tal, mas unicamente se quer frisar que a dor e a morte - bem como a ignorância e a concupiscência - em sua atual intensidade , se evidenciam como um estado inatural com respeito ao nosso ser espiritual e racional.
Temos, pois, uma natureza, a natureza humana, que nos parece desordenada. A filosofia conhece a essência metafísica dessa natureza humana, deve reconhecer-lhe também a desordem, mas ignora-lhe a causa. A filosofia é certamente construtiva, metafísica; mas, chegada ao seu vértice, deve tornar-se crítica, isto é, deve reconhecer os próprios limites, porquanto não consegue resolver plenamente o seu problema, o problema da vida, precisamente por causa do mal. Não pode, todavia, renunciar absolutamente à solução deste problema, já que, desta maneira, comprometeria também a sua maior conquista: Deus. É antiga e famosa a objeção: de que modo concordar a absoluta sabedoria e poder de Deus com todo o mal que há no mundo, por ele criado? Deve-se entender, naturalmente, o mal físico e moral, e este propriamente em relação ao homem.
O Pecado Original
Se a filosofia é impotente para resolver plenamente o seu próprio problema, há, porventura, outro meio a que pode o espírito humano razoavelmente recorrer para a solução de um problema tão premente? Apresenta-se a religião, e especialmente uma religião entre as religiões, a qual nos fala de uma queda do homem no começo de sua história, e afirma esta verdade - bem como todo o sistema dos seus dogmas - como divinamente revelada.
Quanto à possibilidade de uma queda do espírito, em geral, isto é, quanto à possibilidade do mal moral, do pecado, basta lembrar que o ser criado pode, por sua natureza, desviar-se da ordem: porquanto há nele algo de não-ser, de potência , precisamente pelo fato de ser ele um ser criado. E o livre arbítrio proporciona-lhe o modo de realizar essa possibilidade, a saber, proporciona-lhe o modo de desviar-se efetivamente do ser, da racionalidade, enveredando pelo não-ser, pela irracionalidade. Quanto à realidade de uma queda original do homem, remetemos ao fato da Revelação em que é contida.
Da Escritura e da Tradição, garantidas pela interpretação da Igreja e sistematizadas pela teologia, evidencia-se, fundamentalmente, como o homem primigênio não só teria possuído aquela harmonia natural , de que agora é privado, mas teria sido outrossim elevado, como que por nova criação, à ordem sobrenatural , com um conveniente conjunto de dons preternaturais . Noutras palavras, o homem teria participado - com uma natureza extraordinariamente dotada - da vida de Deus, teria gozado de uma espécie de deificação, não por direito, mas por graça. E evidencia-se também que - devido a uma culpa de orgulho contra Deus, cometida pelo primeiro homem, do qual, pela natureza humana, devia descender toda a humanidade - teria o homem perdido aquela harmonia e a dignidade sobrenatural, juntamente com os dons conexos.
Há, portanto, uma enfermidade, uma debilitação espiritual e física na natureza humana, essencial desde o nosso nascimento, e que deve, por conseguinte, ser herdada. Basta, por exemplo, lembrar como, pela lei da hereditariedade, se podem transmitir deficiências materiais e, por conseqüência, também morais: deficiências que não dependem dos indivíduos, visto que eles a sofrem. O pecado original, pois - que importa na privação da ordem sobrenatural, isto é, na privação do único fim humano efetivo, até ao sofrimento e à concupiscência, quer dizer, até à vulneração da própria natureza - voluntário e culpado em Adão, seria culpado em seus descendentes, enquanto não quiserem servir-se das misérias provindas do pecado original como estímulo para a Redenção, praticando o Cristianismo, ingressando na Igreja.
O aspecto da condição primitiva do homem, concernente à elevação sobrenatural, por mais supereminente e central que seja no cristianismo, aqui não interessa. Com efeito, a elevação à ordem sobrenatural sendo, por definição, gratuita , isto é, não devida à natureza humana, bem como a nenhuma natureza criada, a privação da mesma, provinda do pecado, não podia causar vulneração em a natureza humana, nem a perda dos dons praternaturais. E, logo, não podia suscitar o problema do mal, que temos considerado insolúvel pela filosofia.
A Redenção pela Cruz
Mas, que sentido tem o mal no mundo? Conseguiu o homem, mediante o pecado, frustar o plano divino da criação? Ou o próprio mal soube Deus tirar, mediante uma divina dialética, o bem e até um bem maior? É o que explica um segundo dogma da revelação cristã, o dogma da redenção operada por Cristo. Segundo este dogma, Deus, isto é, o Verbo de Deus, a Segunda pessoa da Trindade divina, assume natureza humana, precisamente para reparar o pecado original e, por conseguinte, suas conseqüências naturais também. Visto a ofensa feita a Deus pelo pecado ser infinita com respeito ao Infinito ofendido, Deus precisava de uma reparação infinita, que unicamente Deus podia dar. Sendo, porém, o homem que devia pagar, entende-se como o verbo de Deus assuma em Cristo a natureza humana. Para a Redenção, teria sido suficiente o mínimo ato expiatório de Cristo, tendo todo ato seu um valor infinito, devido à dignidade do operante. Ao contrário, ele se sacrifica até à morte de cruz. Fez isto para dar toda a glória possível à infinita majestade de Deus no reino do mal e da dor proveniente do pecado; é, pois, a glória de Deus o fim último de toda atividade divina.
Fonte: Cristianismo
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